Artigo escrito por Fernanda Silva, especial para o Cidadania (http://cidadania.fcl.com.br/zona-sul-de-todos)
Iniciativa que leva música e oportunidades a favela carioca usa música como incentivo
Vontade e coragem são duas palavras que estão constantemente presentes no vocabulário de Cassia Oliveira. Em 1999, hesitou, mas não desistiu de deixar seu emprego e estabilidade em um banco, onde trabalhou por 23 anos, para buscar sua felicidade. Deixou para trás também o conforto de seu apartamento da Tijuca, no Rio de Janeiro e se mudou para o Cantagalo (RJ), na Zona Sul da cidade. Lá deu continuidade a um projeto que levava música e cultura a comunidade carioca. “Fui morar na casinha que sediava o projeto. O fato de ver como as crianças curtiam o espaço tão simples que havia montado para elas, tornava o ‘voltar para casa’ difícil”, lembra Cassia.
Hoje, 19 anos depois, viu muita coisa mudar, mas não seu amor e dedicação pela região. Sete anos depois de sua chegada, estruturou um novo projeto, nomeado Harmonicanto, que deu continuidade à iniciativa que a levou a comunidade. “Hoje, conto os tostões para viver, mas dentro de mim, há muita vida e muita vontade de realizar”, destaca, sem esconder o orgulho. “Vim para cá buscar o meu sonho, que era achar o meu eu, bastante perdido por muitos anos, em que não fazia o que realmente tinha paixão”, recorda.
Não só encontrou seu ‘eu’, como ajudou a resgatar outros tantos. “O projeto me abriu novas possibilidades. Conheci um mundo novo”, ressalta Luan da Cruz, aluno desde os nove anos. Hoje, aos 27, é voluntário e professor na iniciativa onde se descobriu músico e pianista. Com o objetivo de levar cultura e educação para dentro da comunidade, mostrando que é possível desenvolver potenciais, Cássia uniu forças para manter o projeto e auxiliar a autoestima de pessoas que não vislumbram oportunidades. “O acesso à cultura traz novas visões, novos critérios, novos aprendizados, que vão sendo arraigados, e desenvolvendo a capacidade de crítica, e amplitude de horizontes”, destaca Cássia.
Irmã de Luan, Leandra da Cruz concorda. “A maioria das crianças mal tem a oportunidade de estudar, quanto mais do acesso a música, a lugares e pessoas diferentes”, destaca a jovem que frequentou a iniciativa dos três aos 11 anos. “Um trabalho desses é extremamente importante em qualquer lugar”. Hoje, o Harmonicanto atende 25 crianças de 07 a 14 anos. Lá, diversos projetos são oferecidos. “Temos oficinas de arte, que acontecem a medida que os voluntários nos trazem opções: dança, expressão corporal, dramatizações, pintura, desenho e até visitas a exposições ou idas a teatro ou cinema”, explica Cassia.
Lá, os alunos também são obrigados a ler um livro por semana, em casa. O resultado vem na roda de leitura, onde ou é contada uma história, e discutida, ou cada criança lê uma história. Para os não alfabetizados, a partir de gravura, eles contam uma história. “Os alunos exploram um pouco de cada coisa, e ainda são muito incentivados a serem boas pessoas. A iniciativa os direcionam e os guiam a bons caminhos”, lembra o ex-aluno, que ressalta que Cássia foi mais que uma professora ou amiga: “Ela é como uma mãe”.
A ONG também promove debates sobre temas atuais a fim de estabelecer nos jovens um senso crítico. Para desenvolver o raciocínio lógico, são ofertadas atividades pedagógicas. “Esse contato com atividades, arte e cultura ajuda a pessoa a se expressar e contribui muito até na hora de buscar um trabalho, por exemplo”, conta Leandra.
Carro chefe do projeto, duas vezes por semana, acontecem aulas de música dos mais variados instrumentos. “O objetivo é desenvolver coordenação motora, concentração, aumento da autoestima, respiração, bem como ampliar o gosto musical através do conhecimento de ritmos e gêneros diferentes dos que estão acostumados a ouvir”, ressalta a entusiasta Cassia Oliveira.
“Hoje, oferecemos 25 vagas anuais para crianças e adolescentes de cinco a 15 anos, com aulas de bateria, teclado, flauta doce, canto, canto-coral, teoria musical e técnica de conjunto”, afirma Cassia, que ainda destaca que o grupo completou, em dezembro de 2017, 345 apresentações. “Para nós receber convites é muito importante, pela visibilidade e pela possibilidade de alguma arrecadação, ou em doação ou venda de nossos produtos”.
Anos depois de sair da iniciativa como aluno, Luan da Cruz retornou. Dessa vez, como voluntário. “É legal passar para frente os conhecimentos que adquiri na iniciativa ainda desenvolver minhas habilidades como professor”, destaca Luis da Cruz, que apesar de ex-aluno, continua aprendendo com o projeto. Sem patrocinador, o Harmonicanto segue caminhando a passos curtos e mal tem recursos para pagar o salário dos poucos funcionários, que acumulam funções. Por isso, contam com doações de pessoas físicas, e apadrinhamento dos beneficiados.
Apesar das dificuldades, Cassia não cogita desistir. “O relato dos próprios alunos, hoje adultos, é o que nos impulsiona para, mesmo sem patrocinador ao longo de tantos anos, continuar nossa luta”, ressalta. “Todos são unanimes em dizer que viveram uma boa infância, com passeios, e lazer que até então não conheciam”.